Crônica de Finados
As seis mulheres bebiam suas cervejas devagar, não havia pressa na reunião, apenas uma certa solenidade.
- Oitenta e sete anos.
- É. Tempo avoa.
Era um daqueles bares desinteressantes, do outro lado da cidade, frequentado por mais mosca que gente. A pouca luz que entrava pela janela costumava dormir cedo, e apenas uma lâmpada amarela, especialista em fazer sombras, emitia alguma claridade a partir de um abajur cafona sobre o balcão. A primeira mulher disse:
- Há muito não o visitava. Era mais comum vê-lo na mocidade, no tempo em que conheceu a tal, que nada queria com ele. Me deu um trabalho.
- Sei. A morena.
- Até hoje o pobre sente as pontadas.
- Fasezinha difícil.
A dona do bar, senhora de muita opulência e pouca simpatia, levou à mesa o prato de tremoços. A segunda contou:
- Estive mais com ele quando descobriu o desfalque na sociedade. Quantas noites de desespero, praguejando contra o sócio, descobrindo as falcatruas. E eu ali, do lado, cuidando do seu estômago.
- Foi quando fui acionada – emendou a terceira. Gastrite que evoluiu para úlcera no duodeno. A mais lancinante, desde que quebrara o vidro com a bola e se cortou nos cacos.
Enquanto as outras conversavam, a quarta, aparentemente a mais vulgar delas, sorria um riso feio, desinteressada, como se nem precisasse estar ali. Disse apenas:
- Nunca o conheci. Sua mulher nunca lhe deu nos cornos.
No que a quinta aproveitou:
- Eu, sim. Quando perdeu os pais no intervalo de dois meses. Usei de todos os artifícios para distraí-lo, até fiz do Corinthians campeão mundial... levou uns seis anos de desorientação. Ficaram as sequelas que o acompanham até hoje.
Eis que a sexta mulher, que até então nada dissera, vasculhou sua bolsa, achou o batom com que retocou seus lábios, e disse:
- Fui a que mais tive trabalho. A falta de dinheiro sempre lhe doeu muito. Quantas vezes o encontrei sozinho diante da janela, humilhado com a precisão das filhas, se roendo de desesperança, esconjurando a fome, sem me perceber ao lado, sem querer estar.
Uma espiou o relógio, outra palitou a casquinha que ficara presa no dente, outra deu um gole e ficou com um bigodinho engraçado.
- Mas teve uma boa vida.
- Nem judiamos tanto assim.
- Mesmo hoje à noite, quando se for, sonhando estar numa praia, fica combinado que nenhuma de nós aparecerá.
- Feito.
- Palavra.
- A ele.
- (em coro) A ele.
E todas as Seis Dores Dessa Vida brindaram ao homem, batendo os copos com força, abafando um último suspiro do outro lado da cidade.
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