E depois da vacina, vem o que?
Atualizado: 3 de Dez de 2020
E assim, de repente, do nada, um monte de países declara que começa, semana que vem, a vacinar pessoas contra a Covid.
Inglaterra, China, Alemanha, Turquia, Russia.
Agora, parece, a corrida não é mais para ver quem desenvolve a primeira vacina, mas sim para provar quem é mais ágil na vacinação em massa dos que vivem sob o seu céu.
Ontem ainda em conversa com um amigo que trabalha em uma grande multinacinal do ramo do entretenimento e da arte, ele dizia que sua matriz trabalha com a perspectiva de ver o mundo voltando ao normal em junho do ano que vem.
Para os seus executivos, que comunicaram essa expectativa a cada uma das suas sucursais mundo afora, seis longos meses ainda nos separam daquilo que conhecíamos por cotidiano, rotina, vida.
Não sei se eles trabalhavam com o repentino anúncio dos vários laboratórios envolvidos na busca pela imunização contra o vírus que paralisou nossas vidas, quando formularam as diretrizes para a retomada dos trabalhos em seus escritórios dos Estados Unidos, da França, do Brasil, de Singapura, da Nigéria, da Índia, da Dinamarca, da Bolívia e etc.
No caso de a resposta ser positiva (ou negativa dependendo do pessimista e do otimista decidirem sobre o eterno dilema do copo meio cheio ou meio vazio) seis meses serão necessários antes que a gente se abrace, se beije, se toque, se aproxime, se relacione de acordo com a antiga etiqueta social.
Mas, mesmo depois de estarmos de fato imunizados, por quanto tempo ainda teremos medo?
Quantos segundos ainda hesitaremos?
Quanto ainda pensaremos sobre se devemos reagir com o instinto – bem mais latino que saxão ou asiático, eu sei – de nos atirarmos nos braços do amigo ou da amiga que não vemos há tanto tempo, aqueles que, outro dia mesmo, quando casualmente cruzamos na rua ou no supermercado bloqueamos racionalmente o instinto de beijar, esfregar a bochecha, arrastar a mão carinhosa nas costas, de tocar o rosto ao dizer "que saudade"?
Mesmo os entes queridos de cada uma de nossas famílias: pai e mãe para os contemplados pela sorte, irmãs e irmãos, primos, tias e tios, aquela moça que trabalha na casa onde nos criamos e que é como mãe ou irmã para nós; quantas vezes ainda vamos pensar duas vezes, antes de não pensarmos nem um segundo e só nos agarrarmos como se não houvesse... ontem?
E o tempo?
O que vamos fazer para não reincidirmos e voltarmos a atirar o nosso tempo fora?
O tempo que não sabíamos que tínhamos e que, de repente, descobrimos que temos de sobra – ao menos muito mais abundante do que julgávamos ter?
A vida é curta, já disseram muitas vezes.
Mas vamos continuar a andar nos atalhos?
Vamos perder o tempo que nos foi – temporariamente devolvido – novamente, nos engarrafamentos?
Vamos vê-lo escassear nas filas dos bancos?
Na inutilidade das salas de espera, nas reuniões inócuas, nos filmes sem mérito, nos encontros frívolos com pessoas que não valem a pena?
Ou nos almoços de negócios cujos negócios não nos enriquecem a alma?
Vamos desperdiçar os anos pós-choque com o que éramos?
Com aquilo só – que nós éramos?
Com o que fazíamos e achávamos normal e obrigatório?
Faltam seis meses.
É tempo, ainda, para pensarmos.
Enquanto a vida vai se ajustando de uma maneira que nem sabíamos ser possível, podemos premeditar, planejar, decidir.
Mas acho difícil saber de fato como será.
Porque afetos são imprevisíveis e não conseguimos medir quase nada que os envolve.
Já os hábitos, ah os hábitos: esses são os piores.