O defunto invisível. Um caso real (não, não é sobre coronavírus)
Leiteria Mineira, Centro do Rio, uma tarde de setembro de 2010. Zé, o garçom, conduz Marcelo até a última mesa à esquerda do salão.
- Helinho, há quanto tempo!
- Pois é, Marcelo. E não me resta muito mais.
- Deixa disso, vai. Dá uma provinha desse mingau de aveia. E a casa de Cabo Frio?
- Passarei esse meu último verão lá.
- Último? Ahh vá-te à merda.
- Marcelo, um câncer daqueles me pegou. Duro uns meses aí. O doutor prometeu que viro o Réveillon.
- Deixa disso. Por que não pega uma segunda opinião? Vai que...
- Marcelo, a minha solução seria um segundo calendário. Até chequei o chinês, mas o Réveillon deles cai dia 5 de fevereiro. Paliativo de merda, né?
- Mas e o tratamento? Porra, a ciência evoluiu tanto...
- Marcelo: quantos dedos tem aqui?
- Não me sacaneia, pô Helinho.
- Marcelo, somos amigos desde a adolescência. Você viajou para Cuba, Alemanha, EUA, e... nada.
- O meu caso é diferente, parceiro, não vê?
- É diferente porque o seu não mata.
- Helinho, e a família?
- Menos conformada do que eu. Como eu disse à mocinha da quimioterapia, quando ela veio com aquele papinho de “puxa são 80 anos de vida”: não, senhorita, são 80 anos de Swing, Marlboro e mulheres. O Swing foi só de sacanagem pois como você sabe, eu gosto é de Red Label.
- Ela pode te processar por assédio, seu maluco.
- Será a glória, Marcelo. O primeiro caso de absolvição por resultado positivo no teste do bafômetro. Um leading case, o meu canto do cisne como advogado. Um whisky como álibi.
- Deixa pra morrer no outono. Verão é foda. Você vai ser cremado né? Ateu geralmente...
- Porra nenhuma. Lembra daquele encontro no Sumaré no qual o Dom Hélder e o Dom Evaristo Arns me convenceram a trabalhar durante anos para a Santa Casa? Foi de graça, e ainda acabei “morrendo” numa promoção de jazigo. Dom Eugenio Sales lembrou que Mercedes, a minha espanholita, é católica. Eu ainda ia responder a Sua Santidade que cremação faria mais sentido, citar Torquemada, a Inquisição, mas ai o Fábio Comparato, que também já tava deixando de ser comunista, olhou com aquela cara de mau pra mim.
-Puta merda. Velório, missa de corpo presente, verão, 40°, só falta cair num sábado.
- Tu não precisa ir, né Marcelo!
- Como assim, Helinho? Vai ser uma puta festa. Ver a nossa turma - quer dizer, os que ainda estão aí - vai ser divertido. Mas nada de caixão aberto, faça-me o favor.
- Ahh, Marcelo, a nossa geração gosta. E, cá entre nós, qual a diferença pra você?
- Parcerinho, não lembra o velório do Faoro? Sempre que chego na porra de um funeral, um bom samaritano me pega pelo braço, vai abrindo caminho até o caixão e pousa a minha mão na testa ou no nariz do defunto. “Deixa o ceguinho se despedir, deixa!”
- Cacete, Marcelo!
- Imagina a minha aflição! Primeiro tateio e aí vem aquela coisa de ter que acariciar o rosto. Fico só ouvindo o volume dos soluços aumentar. E depois é um saco remover os cosméticos que a turma da necromaquiagem aplica pra deixar o defunto coradinho.
- De mulher deve ser pior, Marcelo.
- De socialite então. Creme pra caralho e até perfume, Hélio.
Capela 2, Cemitério São João Batista, uma manhã em janeiro de 2011. Céu azul, 40°. Helio jazia num caixão fechado e Marcelo com seus óculos escuros e bengalinha branca relembrava como ambos acertaram os serviços funerários do velho. Para gargalhada geral.
Inclusive do Zé, o garçom.