Reseñas do Cañadas #4
Serotonina, de Michel Houellebecq*
Desde que li o excelente Submissão, do enfant terrible da literatura francesa contemporânea, a notícia de um novo romance do autor é daquelas que criam imediata ansiedade e expectativa.
Não deve ser apenas coincidência eu ter escolhido essa obra para resenha na sequência de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski. Há muito do narrador-personagem daquela obra-prima do autor russo na personagem Florent-Claude Labrouste, de Houllebecq. Ambos são homens acima de quarenta anos, com inteligência acima da média, solteiros, extremamente ácidos e críticos a si mesmo e às falsidades dos laços humanos que os rodeiam, mas ainda assim capazes de manterem uma boa dose de humor-quase-negro.
Mas o sétimo romance do autor francês carrega muitas outras características que lhe são próprias: como em Submissão e na verdade em toda a sua obra, ele não economiza quando toca nas feridas mais variadas e fétidas da sociedade contemporânea, passando pela liquidez baumaniana dos relacionamentos afetivos, pela dependência química coletiva por antidepressivos e álcool, pela misoginia, pela pedofilia e até por outras questões sociais e políticas como a ineficiência da máquina estatal e a decadência da aristocracia francesa.
Como pano de fundo para tudo isso está o vazio da vida contemporânea: a fugacidade dos relacionamentos, a absoluta ausência de vínculos com pessoas ou lugares e a falta de empatia pelo outro que parece sequer ser um problema para o narrador-personagem.
Uma palinha do mestre no trecho em que ele se autoanalisa a partir do seu próprio nome, que odeia:
”Mas não fiz nada, continuei atendendo por esse nome repulsivo, Florent-Claude, o máximo que consegui com algumas mulheres foi que se contentassem com Florent, já com a sociedade em geral não consegui nada em relação a isso, como aliás em relação a quase tudo, sempre me deixei levar pelas circunstâncias, demonstrei cabalmente minha incapacidade de assumir as rédeas da minha própria vida, a virilidade que parecia emanar do meu rosto de ângulos bem definidos, dos meus traços cinzelados, não passava de um engodo, pura e simplesmente uma fraude, pela qual aliás eu não tinha qualquer responsabilidade. Deus havia decidido por mim, mas eu era, e na verdade sempre tinha sido, um maricas inconsistente, já estava com quarenta e seis anos, nunca fora capaz de controlar minha própria vida, enfim, era provável que a segunda parte da minha existência fosse apenas, tal qual a primeira, um flácido e doloroso desmoronamento.”
Como se vê, impossível ao leitor não rir sem ficar triste ao mesmo tempo, não se identificar ou se interessar pelo enredo e pelas personagens. Enfim, impossível não se deixar levar fácil por Serotonina.
E eu sinceramente não sei o que mais pode se esperar de um ótimo romance como esse.
*Comprei na Livraria Cultura, por R$ 41,90.
Foi lançado pela Alfaguara em 2019 e tem 238 páginas
Nota do Cañadas: 4/5